2015/03/21

Entrevista a Joana Lima - uma portuguesa que procura sinais de vida noutros planetas


Não é todos os dias que temos oportunidade de falar com cientistas que se dedicam a aprofundar o nosso conhecimento sobre Universo (e consequentemente também sobre nós) olhando para planetas e luas distantes; e por isso mesmo foi uma oportunidade que não deixamos escapar. A Joana Lima é uma jovem cientista portuguesa que de momento está de olhos postas na Europa (a lua de Júpiter e não aquela em que estamos inseridos), e que acedeu responder a algumas perguntas - que poderão servir de inspiração e motivação para todos aqueles que sonham em seguir passadas idênticas.

AadM - Olá Joana, muito obrigado por acederes a responder às nossas perguntas. Comecemos por: quem és, onde estás, o que fazes?


Antes de mais obrigada pelo convite. Cada vez mais urge falar de ciência e iniciativas como esta ajudam a despertar interesse e a aproximar as pessoas a quem faz ciência.

O meu nome é Joana e neste momento estou a estagiar no Centro de Astrobiología em Madrid, um
centro de investigação do INTA (Instituto Nacional de Técnica Aeroespacial) associado ao NAI (NASA Astrobiology Institute). É o único centro de investigação de Astrobiologia que reúne no mesmo espaço físico todas as áreas científicas e toda a tecnologia associada a este ramo de ciência.


Sou Cientista do Meio Aquático (ICBAS – Universidade do Porto) de formação e neste momento estou aqui a desenvolver o meu projecto no Departamento de Planetologia e Habitabilidade no Laboratório de Geologia Planetária. Estou a estudar o que se passa no fundo do oceano da lua Europa que orbita o planeta Júpiter e como usar as tecnologias de que dispomos actualmente (ou que se encontram em desenvolvimento) para detectar indicadores de processos biológicos (os chamados bio-indicadores).


AadM - De onde vem o teu fascínio pela ciência. O que te inspirou a gostar dessas coisas, e em que fase decidiste “Vai ser mesmo isto que vou fazer”?

O momento em que decidi fazer uma carreira em ciência foi algures entre o meu 6º/7º ano de escola básica, mas desde muito cedo que adorava ver as estrelas. Aliás o meu primeiro livro, comprado na Feira do Livro do Porto com as minhas poupanças, foi um livro do Máximo Ferreira de observações astronómicas (religiosamente encadernado e estimado).

Cresci com uma dieta variada de programas de ficção-científica que passavam na RTP2, devorava-os, as naves espaciais e tudo o que fosse relacionado com o espaço fascinavam-me e acredito que isso contribuiu, e muito, para a minha paixão pela ciência.

Três cientistas alimentaram muito a minha “veia” científica: Louis Pasteur, Stephen Hawking e Carl Sagan (foi por esta ordem que apareceram na minha vida):
  • Pasteur, porque no início do meu 5º ano uma professora me recomendou ler a sua história de vida (li-a num dia e apaixonei-me, durante muitos anos tudo o que encontrava sobre ele era lido de imediato), as lutas dele contra a superstição e contra as dificuldades ainda hoje são uma inspiração;

  • Hawking, porque é um excelente comunicador de ciência e a sua história de vida é igualmente uma inspiração, mesmo para quem não é de ciências;

  • Sagan, porque além de ser o “pai” da Astrobiologia (antigamente designada por exobiologia) foi o maior comunicador de ciência de sempre e o que mais pessoas inspirou a olhar para o Universo e tentar perceber os seus mistérios.

    A frase dele que ainda hoje me acompanha (especialmente no meu trabalho), ouvi-a pela primeira vez na adpatação televisiva do livro Contact, e que de uma forma simples e cândida resume o que me fez (per)seguir esta carreira: “The universe is a pretty big place. If it's just us, seems like an awful waste of space.” Carl Sagan, Contacto (1997)

AadM- Como reagiram família e amigos a esta tua opção de carreira?

Nunca me deparei com grande oposição, claro que muitos me avisaram da dificuldade de uma carreira nesta área e não esquecendo a corrente situação do financiamento da ciência um pouco por todo o mundo. Mas depois de tentar o possível, o racional, vi-me a braços com o desemprego e pensei em alcaçar o impossível: acabei aqui em Madrid, a fazer o trabalho que nunca me atrevi sequer a sonhar.

Mesmo aqui longe, sinto o apoio de todos, sinto que acreditam neste meu esforço, pois só podemos fazer alguma diferença quando estamos a trabalhar em algo que nos apaixona profundamente.


AadM - Como foi seguir na escola um percurso que te levasse até este destino que desejavas?

Ao longo do meu percurso escolar senti que tudo o que fosse fora do currículo era quase proibido abordar e se insistíssemos, o professor tinha uma das seguintes reacções: ignorava a questão; ou então fazia questão de lembrar que aquilo não fazia parte da matéria e que não podia perder tempo com aquilo. Isso para mim foi sempre o mais difícil, pois não sentia grande apoio para alimentar o meu interesse. Só no meu secundário é que encontrei os primeiros professores a permitir que os seus alunos fossem para além do currículo obrigatório, curiosamente ambos de biologia.

Digo curiosamente, porque naquela altura ainda desconhecia a existência de uma ciência chamada astrobiologia, e queria seguir carreira em Astronomia. Devido a um erro informático (malditos informáticos ;) ) fui colocada numa turma de biologia em vez de física e encontrei aí os dois professores que posso dizer que ainda hoje me acompanham, pois possibilitaram todo o tipo de experiências, questões e aventuras que mais nenhum professor sequer propunha (desde montar um ranário na sala, a usar os intervalos para nos espicaçar a curiosidade e discutir com os alunos sobre ciência).

Na Faculdade o cenário foi muito idêntico, se não até mais constritivo (isso desiludiu-me bastante), os temas tinham de ser os escolhidos pelos professores (mesmo que se fossem os mesmo há dezenas de anos), até que um desafio com a minha professora de Química Ambiental deu origem a um trabalho que culminou neste meu estágio. Antes de vir para aqui, fiz questão de pessoalmente agradecer a essa professora por ter permitido a realização desse trabalho. Achei importante mostrar a diferença que uma pequena decisão na sala de aula pode fazer na vida de um aluno.


AadM - Um tema que continua a ser recorrente e sempre actual na nossa sociedade: ainda se faz sentir a coisa de ser “homem/mulher” nas áreas tecnológicas? E se sim, como lidaste com isso?

Curiosamente a minha equipa de trabalho só tem um homem, e no meu local de trabalho (para além do laboratório) partilhado com os outros bolseiros é de notar também o domínio do género feminino. Mas quando começamos a subir na carreira, nota-se uma inversão bem vincada; chefes de departamento ou investigadores em topo de carreira são quase 90% homens.

Comparando as duas fases – início vs. topo de carreira – faz-me questionar até que ponto ainda existe alguma “selectividade” nas carreiras STEM. Como ainda estou muito no início do meu percurso e a minha equipa é maioritariamente feminina (aliás a única mulher chefe de Departamento é a minha mentora) pelo que não tive de lidar muito directamente com os problemas de discriminação de género, mas sei que será uma questão de tempo até me ver a braços com algumas injustiças.

Um dia numa discussão amigável entre os bolseiros, gerada pelo que tradicionalmente se vê nas salas de comando das missões da NASA e da ESA (isto foi a propósito da missão Rosetta) vs. o que se viu aquando do lançamento da missão a Marte da Índia, a maioria dos colegas homens diziam que isto da discriminação de género era um “não-problema”. E acredito que a maioria das pessoas pensará assim, pois nunca olharam com atenção para as disparidades entre homens e mulheres nas STEM nem se colocaram no lugar de mulheres altamente qualificadas e que não conseguem financiamento em detrimento de colegas masculinos por vezes menos qualificados.

Aconselho a leitura do site Women in Planetary Science sobre mulheres em Ciências Planetárias e algumas das situações com que se deparam. Por vezes algumas atitudes são tão intuitivas que é normal nem nos apercebermos que estamos a ter um comportamento discriminatório para com as mulheres.


AadM - Regressando ao nosso pais. Achas que em Portugal se faz o suficiente para promover este tipo de carreira, ou é obrigatoriamente necessário olhar “lá para fora”?

Portugal é um dos membros da ESA (European Space Agency), tem um Gabinete do Espaço fundado pela Teresa Lago, uma das grandes mulheres de ciência em Portugal, mas desde que ela se reformou está praticamente inactivo e resume-se a estágios no CERN ou em áreas ligadas a engenharia.

Se já nessas áreas Portugal tem pouco a oferecer, na área de Astrobiologia a oferta é nula. Portugueses nesta área, somos um punhado deles (a título de curiosidade, a maioria deles saídos da Universidade do Porto) e tanto quanto sei estamos todos no estrangeiro.

Temos centros de Astrofísica muito bons e reconhecidos internacionalmente pelo seu trabalho científico. O CAUL e o CAUP (Centros de Astrofísica da Universidade de Lisboa e da Universidade do Porto) recentemente uniram-se e formaram o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, mas não existem ainda linhas de investigação para além das que já existiam em Astrofísica.

É preciso divulgar mais e melhor a ciência em Portugal, mostrar aos mais novos que ser cientista não é aborrecido nem impossível, que não precisamos de ser como os cientistas que vemos nos filmes ou na televisão. Precisamos urgentemente de especialistas qualificados a escrever e rever as notícias que saem nos meios de comunicação social (as notícias sobre a Rosetta em Portugal foram especialmente humilhantes).

Precisamos de professores empenhados em ensinar e motivar os alunos, e de mostrar o interior dos centros de investigação a todos (com especial foco nos mais novos que estão a escolher o seu caminho). Urge ensinar os mais novos a sonhar com algo mais do que o que vêm à sua volta, Portugal precisa de olhar para o Universo e sonhar tão alto como os nossos vizinhos espanhóis. Os benefícios e avanços tecnológicos saídos desses sonhos seriam o suficiente para nos tornarmos finalmente num país competitivo.


AadM - Descreve-nos como é “um dia normal” para ti.

A forma como estruturo o meu dia, está muito relacionada com a fase de pesquisa em que me encontro no meu trabalho. Quando estou na fase de pesquisa passo a maior parte do meu tempo no openspace que partilho com os meus colegas bolseiros, a ler artigos, livros e a construir uma hipótese.

Depois de toda a pesquisa passo à fase experimental (que é a fase em que me encontro neste momento). Estou a trabalhar com um processo geológico chamado serpentinização, que resumidamente é o que acontece quando água interage com a rocha olivina, dando origem a novos minerais e a metano.


O metano recentemente detectado na superfície de Marte é possivelmente resultado deste processo geológico e nada aponta para haver na realidade vida envolvida na produção de metano em Marte.

Este processo é bastante comum na Terra e ainda hoje ocorre nas chaminés hidrotermais nas profundezas dos nossos oceanos. Acredita-se que terá sido um dos processos que terá auxiliado o aparecimento de vida no nosso planeta (as bactérias mais primitivas ainda hoje se “alimentam” de metano e são essas bactérias também as que mais surpreendem em termos de resistência a ambientes extremos).

O que eu estou a tentar comprovar é que este processo também ocorre em superfícies planetárias, como nas luas geladas do nosso sistema solar, com especial enfoque na lua Europa, que segundo os dados da Galileo possui um oceano liquido em contacto directo com o material rochoso do manto.


Tento também comprovar que existem minerais que trazidos por cometas ou asteróides ajudaram a catalisar a produção de metano acelerando uma série de acontecimentos que nos fizeram chegar até aqui.

Mal termine esta série de experiências, passarei para uma câmara de alta pressão para simular o fundo do oceano de Europa, para verificar se o meu modelo funciona também naquelas condições.


AadM - Por vezes a Ciência é uma área onde o progresso é lento e moroso, e que obriga a ter grande paciência. Achas que daqui por 10 anos continuarás a acordar a cada dia, com a curiosidade de saber o que irás “descobrir” nesse novo dia?

Antes de iniciar a minha primeira experiência passei cerca de quatro meses na minha secretária a ler artigos e a recolher informação para formular uma solução para a minha questão: como “funciona” o oceano gelado da Lua Europa?

Por isso, para astrobiólogos, astrónomos e astrofísicos, a paixão é das características mais importantes no nosso currículo pois os nossos “sujeitos” de estudo nunca estarão ao nosso alcance (pelo menos durante as nossas vidas).

Daqui a dez anos não sei onde estarei, ainda para mais com todos os cortes que a ciência em todo o lado tem sofrido, mas tendo em conta que mesmo naqueles dias em que tudo corre mal (por exemplo, na semana passa nenhum equipamento funcionou e as minhas experiências ou derreteram na estufa ou a pressão fez com que rebentassem, e nesta semana descongelaram-me o meu gelo seco e nada pude fazer) ando com um sorriso nos lábios, pois mesmo com estes desaires é um privilégio enorme poder trabalhar aqui e publicar o meu trabalho com estes cientistas como guias e mentores. Acredito que se puder continuar a trabalhar nesta área, nem que seja noutro lugar do mundo (que é o mais provável) serei certamente uma pessoa extremamente feliz e realizada, pois quantos poderão dizer num qualquer momento da sua vida, de poderem estar a fazer aquilo com que sempre sonharam?


O nosso agradecimento à Joana, e fica desde já prometido que voltaremos a "chateá-la" no futuro para ir acompanhando os seus projectos. :)

3 comentários:

  1. Que curso é que ela tirou e em que universidade?

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    1. Olá filipa! :)
      O curso que tirei foi o de Ciências do Meio Aquático no ICBAS, da Universidade do Porto. :)

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    2. Olá, Joana! Desde mais gostava de lhe dar os parabéns, e, se ainda estiver atenta aos comentários, de lhe pedir uma opinião: Eu vou concluir este ano a licenciatura em psicologia, mas eu acho que escolhi mal a área e acho que não tenho perfil para ser psicóloga. A única área da psicologia que me interessa realmente é a neuropsicologia, mas mesmo assim não fico 100% satisfeita e queria mudar de área científica para algo mais relacionado como biologia e química, mas que não implicasse recomeçar de novo uma licenciatura, isso está mesmo fora de questão, pois já tenho quase 25 anos (andei noutro curso e depois mudei, o que me fez perder tempo). Atendendo a esse pormenor, eu pensei em ingressar num curso de mestrado com boa formação nessa área mas em que me aceitassem a licenciatura em psicologia sem ir parar logo à cauda da lista, isto é, um mestrado na área das ciências forenses que dê para me especializar em ciências laboratoriais forenses (biologia e geologia, química forense, etc.). Encontrei um mestrado que preenche os requisitos no Porto, e penso que posso depois ter acesso a um doutoramento na área das ciências biológicas. A minha dúvida é se o facto da licenciatura ser noutra área afecta as minhas possibilidades de trabalhar na área da biologia, incluindo da astrobiologia, que é uma área que me interessa bastante e sempre interessou, mas que nunca segui por achar que não havia saída profissional para queria trabalhar nela.

      Grata pela atenção

      Maria Teodósio

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