2019/09/05

Retenção de metadados chega ao Tribunal Constitucional


A queixa apresentada pela Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais relativamente à retenção abusiva dos metadados das comunicações vai ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, sendo que conta já com a "ajuda" da directiva europeia que foi considerada inválida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

“Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência” - Declaração Universal dos Direitos Humanos

“O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis.” - Constituição da República Portuguesa

A Provedora de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstracta da constitucionalidade dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que estabelece uma obrigação geral de conservação de dados relativos às telecomunicações (também referida por "retenção de metadados").
Este pedido de apreciação constitucional surge na sequência da queixa apresentada pela Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais à Provedora de Justiça, que recentemente veio a dar-nos razão, tendo endereçado à Ministra da Justiça uma recomendação de alteração legislativa no sentido de compatibilizar a lei portuguesa com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, na medida em que "o legislador português acolhe a solução que, expressamente, o Tribunal de Justiça censurou". Porém, mesmo perante recomendação de alteração legislativa por parte da Provedora de Justiça, o Governo manteve a recusa em conformar a lei com as exigências decorrentes da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Agora, a Provedora de Justiça decidiu enviar a lei para apreciação do Tribunal Constitucional.


Sobre a lei dos "metadados"

A Lei nº 32/2008, que transpôs a Directiva n.º 2006/24/CE, consagrou a obrigatoriedade das operadoras de comunicações electrónicas conservarem todos os dados de tráfego e de localização pelo período de um ano. Mas já por duas vezes (acórdão Digital Rights Ireland em 2014 e acórdão Tele2/Watson em 2016) o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que tal regime não respeita dos direitos fundamentais dos cidadãos europeus previstos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, tendo em consequência declarado inválida a directiva que esteve na origem desta lei. Segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia, não é admissível “uma conservação generalizada e indiferenciada de todos os dados de tráfego e de todos os dados de localização de todos os assinantes e utilizadores registados em relação a todos os meios de comunicação eletrónica”.

Embora estas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia incidam sobre a directiva europeia - e não directamente sobre a lei nacional que resultou da transposição dessa mesma directiva - o regime constitucional português é similar ao da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia no que respeita à proibição constitucional de ingerência das autoridades públicas na correspondência e telecomunicações dos cidadãos e ao princípio da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais, pelo que as mesmas razões que levaram à invalidação da directiva devem também levar ao chumbo constitucional deste regime. Isto sem descurar o facto de a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - tal como interpretada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia - ter aplicação directa no ordenamento nacional.

Em sentido semelhante tem-se também pronunciado, desde há vários anos, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, que decidiu mesmo desaplicar esta lei nas situações que lhe sejam submetidas para apreciação.

Eduardo Santos, Presidente da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais, considera tratar-se de "uma vitória para os cidadãos portugueses e para a defesa dos direitos fundamentais". "Perante uma manifesta falta de vontade política em defender a privacidade das telecomunicações dos cidadãos e a reserva da sua vida privada enquanto direitos fundamentais previstos na Constituição e tal como entendidos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, há muito que a D3 procurava levar o assunto à apreciação do Tribunal Constitucional. Isso foi agora tornado possível graças à Provedora de Justiça", continuou. Acrescentou ainda que: "a vigilância massiva a que os cidadãos são sujeitos nos dias de hoje tem efeitos perversos na nossa sociedade. Ninguém é livre sob vigilância permanente".

Relação com o diploma que permite acesso das Secretas aos metadados

Este importante desenvolvimento ocorre, segundo notícias da imprensa, numa altura em que se espera para breve a publicação do acórdão do Tribunal Constitucional sobre o regime de acesso dos serviços de informação (SIRP - Sistema de Informações da República Portuguesa) aos mesmos metadados das telecomunicações, o qual se espera em sentido negativo, ou seja, de chumbo constitucional. Embora relacionadas, trata-se de leis diferentes.

Em 2015, um primeiro diploma que permitiria o acesso dos serviços de informação aos metadados havia já sido alvo de chumbo Constitucional (Acórdão n.º 403/2015). Mais recentemente, foi aprovado na Assembleia da República uma lei que reformulava esse regime de acesso alvo de censura constitucional. Apesar de todo este histórico, o Presidente da República acabaria por promulgar o diploma sem pedido de apreciação constitucional, curiosamente salientando o "consenso jurídico" e a "relevância para a proteção dos direitos fundamentais" do diploma. Felizmente, deputados de PCP, PEV e BE requereram a fiscalização sucessiva abstracta deste diploma junto do Tribunal Constitucional, e é essa a decisão que se aguarda para breve.

Agora, o Tribunal Constitucional terá de ir mais longe na sua apreciação. Não é apenas a questão do acesso das Secretas aos metadados: toda a conservação indiscriminada de dados de telecomunicações dos portugueses é, em nosso entender, inconstitucional. Citando a Provedora de Justiça: "Entende-se que tal regime restringe indevidamente os direitos fundamentais à reserva da intimidade da vida privada e familiar e ao sigilo das comunicações, violando ainda o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, todos consagrados na Constituição da República Portuguesa".

Ninguém é livre sob vigilância permanente.

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